quarta-feira, 27 de junho de 2012

Literatura indígena: o tênue fio entre escrita e oralidade

Por Daniel Munduruku
[Graduado em Filosofia. Doutor em Educação pela USP. Escritor]



A escrita é uma conquista recente para a maioria dos 230 povos indígenas que habitam nosso país desde tempos imemoriais. Detentores que são de um conhecimento ancestral aprendido pelos sons das palavras dos antigos estes povos sempre priorizaram a fala, a palavra, a oralidade como instrumento de transmissão da tradição, obrigando as novas gerações a exercitarem a memória, guardiã das histórias vividas e criadas.

A memória é, ao mesmo tempo, passado e presente que se encontram para atualizar os repertórios e encontrar novos sentidos que se perpetuarão em novos rituais que abrigarão elementos novos num circular movimento repetido à exaustão ao longo de sua história.
assim, estes povos traziam consigo a memória ancestral. Essa harmônica tranquilidade foi, no entanto, atingida pelo braço forte dos invasores: caçadores de riquezas e de almas. Passaram por cima da memória e foram escrevendo no corpo dos vencidos uma história de dor e sofrimento. Muitos dos afetados pela gana destruidora tiveram que se ocultar sob outras identidades para serem confundidos com os desvalidos da sorte e assim poderem sobreviver. Estes se tornaram sem-terras, sem-teto, sem-história, sem-humanidade.
Por outro lado - e graças aos sacrifícios dos primeiros - o outro grupo pôde manter sua memória tradicional e continuar sua vida com mais segurança e garantia. Estes povos foram contatados um pouco mais tarde, quando os invasores chegaram à Amazônia e tentaram conquistá-la, como já haviam feito em outras regiões. Tiveram menos sorte, mas também ali fizeram relativo estrago nas culturas locais e as tornaram dependentes dos vícios trazidos de outras terras. Foram enfraquecidos pela bebida, entorpecidos por uma religião imposta e envergonhados em sua dignidade e humanidade.

Agora, a importância da escrita

Estes povos - uns e outros - estão vivos. Suas memórias ancestrais estão fortes, mas ainda têm de enfrentar uma realidade mais dura que de seus antepassados. Uma realidade que precisa ser entendida, pois isso não se faz mais com um enfrentamento bélico, mas através do domínio da tecnologia que a cidade possui. Ela é tão fundamental para a sobrevivência física quanto para a manutenção da memória ancestral.
Claro está que se estes povos fizerem apenas a tradução da sociedade ocidental para seu repertório mítico, correrão o risco de ceder ao canto da sereia e abandonar a vida que tão gloriosamente lutaram para manter. É preciso interpretar. É preciso conhecer. É preciso se tornar conhecido. É preciso escrever - mesmo com tintas do sangue - a história que foi tantas vezes negada.
A escrita é uma técnica. É preciso que a gente indígena domine essa técnica com perfeição para poder utilizá-la a favor de si mesmos. Técnica não é negação do que se é. Ao contrário, é afirmação de competência. É demonstração de capacidade de transformar a memória em identidade, pois ela reafirma o ser na medida em que precisa adentrar no universo mítico para dar-se a conhecer ao outro.
O papel da literatura indígena é, portanto, ser portadora da boa notícia do (re)encontro. Ela não destrói a memória na medida em que a reforça e acrescenta ao repertório tradicional outros acontecimentos e fatos que atualizam o pensar ancestral.
Há um fio muito tênue entre oralidade e escrita, disso não se tem dúvida. Alguns querem transformar este fio numa ruptura. Prefiro pensar numa complementação. Não se pode achar que a memória não se atualiza. É preciso notar que ela - a memória - está buscando dominar novas tecnologias para se manter viva. A escrita é uma dessas técnicas, mas há também o vídeo, o museu, os festivais, as apresentações culturais, a internet com suas variantes, o rádio e a TV. Ninguém duvida de que cada uma delas é importante, mas poucos são capazes de perceber que é também uma forma de contemporânea de a cultura ancestral se mostrar viva e fundamental para os dias atuais. 
Pensar a Literatura Indígena é pensar no movimento que a memória faz para apreender as possibilidades de mover-se num tempo que a nega e que nega os povos que a afirmam.
A escrita indígena é a afirmação da oralidade. Por isso atrevo-me a dizer como a poeta indígena Potiguara Graça Graúna:

Ao escrever,
dou conta da minha
ancestralidade;
do caminho de volta,
do meu lugar no mundo.

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